14 de jun. de 2014

[Conto] O Gato no Muro

Esse foi o meu primeiro conto a ser publicado em uma antologia: Lugares Distantes. Com o fim da editora Infinitum, decidi postá-lo aqui no blog. O texto foi revisado, mas não reescrito. A história continua a mesma.
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Quando saiu no início da noite, Lucas disse aos pais que iria dormir na casa de seu amigo, Edu. Nada que pudesse preocupá-los. Eduardo tinha o hábito de reunir seus colegas de classe para noitadas de filmes e videogame; além disso, os pais do garoto sempre ficavam de olho na molecada. Lucas sabia que era uma péssima ideia dizer a eles quais eram seus verdadeiros planos: uma aventura vazia e infantil para provar sua masculinidade.

A Lua já estava alta em seu trajeto quando o rapaz alcançou o terreno abandonado na rua Boa Esperança, cercado por um encardido e fétido muro, exalando um insuportável odor de vômito, urina e todo tipo de imundice humana. Apesar da tinta descascada quase por completo e dos blocos de reboco que jaziam na calçada, ainda se mostrava imponente, graças à altura que alcançava. A muralha fora erguida décadas atrás, mas ninguém saberia dizer quem a construíra e o que existia em seu interior. Esses fatos perderam-se com o tempo. Verdade é que os moradores da vizinhança evitavam aquele lugar e ocasionalmente surgiam notícias de algum garoto desaparecido. Contavam que certa vez, um grupo de funcionários da prefeitura adentrou os muros para planejar uma demolição, mas apenas um deles teria conseguido sair; passando o resto de seus dias perturbado e com medo.

Lucas não tinha muita certeza de qual discussão levara Edu e ele a aceitarem a insana aposta de entrar no interior do terreno e tirar fotos com o celular como prova. Bem, seja como for, ao chegar ao local, Eduardo já o aguardava com a inesperada companhia de outra menina da classe. Vânia, era como se chamava a garota, que como de costume, trazia o gato gordo no colo. Essa era uma cena bem comum, o bichano parecia colado ao braço dela. O animal raramente usava as próprias patas para andar.

A garota tinha uma expressão aflita. Ficara sabendo dos planos de seus amigos de infância, e ali estava para tentar impedir, que levassem aquela empreitada à frente. Porém, Lucas e Edu permaneciam irredutíveis, alegavam que era coisa de homem, acrescentando outros argumentos pouco convincentes para a mente da menina. Contudo, ela persistia, dizia que eles não precisavam provar nada, que aquilo era perigoso e pedia “pelo amor de Deus” que desistissem daquela ideia!

Cada vez mais ela se deixava levar pela emoção. Quase chegava às lágrimas, quando foi bruscamente interrompida por um miado estridente que mesmo de baixo, ecoou por toda a rua Boa Esperança. Não vinha do gato gordo, este continuava quieto no colo de Vânia. Era outro felino, um gato em cima do grande muro, de pelo tão preto que mal era possível definir seus contornos contra o céu noturno. Apenas o brilho sinistro dos olhos denunciava sua presença.

O tempo congelou durante aquela cena surreal. Outro miado foi ouvido, mas totalmente diferente do primeiro, suave, quase inaudível. O gato gordo lançou um olhar de desaprovação à dona do braço no qual acomodava-se preguiçosamente. Acuada e indecisa, Vânia olhou ao redor como se procurasse algo, sem saber exatamente o quê. A boca abriu, porém as palavras não vieram. Por fim, baixou o rosto, resignada.

— Está bem, então. Façam como quiserem.

E correndo pela rua, sumiu na noite. O espetáculo bizarro deixara Lucas e Eduardo estáticos. Tudo se passara tão rápido e de tal maneira que chegavam a duvidar que realmente acontecera ou se teria sido imaginação. O gato preto manifestou-se acordando os amigos para a realidade.

Voltaram-se um para o outro. Continuar ou não? O debate foi curto. A curiosidade venceu.

Procuraram por um ponto onde poderiam adentrar a muralha e retornar sem despertar a atenção de algum passante. O gato preto acompanhou a dupla em cima do muro, decidido a ser testemunha da invasão. Virando uma esquina, o muro e a calçada mergulharam na penumbra por conta de um poste sem lâmpada. Com as mãos em forma de concha, Lucas forneceu um ponto de apoio a Edu, depois foi Eduardo quem estendeu a mão para auxiliar o amigo.

O gato preto observou a escalada ansiosamente, inabalável aos gestos que os garotos faziam na tentativa de assustá-lo. Assim que adentraram de vez o terreno abandonado, Lucas e Eduardo sentiram um medo real pela primeira vez. Do alto parecia um terreno baldio comum, entretanto, agora que pisavam em seu interior estava diferente, mudado.

Por alguma razão o pensamento de Lucas voltou-se para Vânia e para o gato gordo. Lembrou-se da primeira vez que ela apareceu com o bichano, contando como o salvara da morte na rua. Lucas e Vânia já eram amigos desde quando podiam se lembrar. Brigavam o tempo todo, mas mesmo chorando, ela nunca perdia aquele brilho especial, vivo, no olhar. Um brilho que havia se apagado, substituído por um abismo cada vez maior. Como os olhos do gato que o observava de cima do muro.

A luz da Lua era tragada pelas sombras, uma suave cerração ameaçava descer sobre eles.  Lucas notou o mato decrépito forrando o solo. Em alguns pontos havia indícios de que um grande incêndio ocorrera no passado. O muro se projetava para frente de ambos os lados, desaparecendo na escuridão, sem que fosse possível enxergar o seu fim. Aquele terreno era mesmo tão grande? Com a típica agilidade felina, o gato preto saltou para mato e pôs-se a correr, mergulhando nas trevas.

Por certo, logo teriam retornado se algo não tivesse lhes chamado a atenção ― pequenos pontos azuis brilhando no escuro, como vaga-lumes congelados no ar. Prendendo a respiração, Lucas avançou na frente, fascinado pelo brilho. Um som indistinto chegou a seus ouvidos. Absorto ele prosseguiu até que os pontos azuis tomassem a forma de chamas, que crepitavam sem irradiar calor nem consumir o mato; algumas emitiam sua luz fantasmagórica flutuando em pleno ar. O som tornou-se cada vez mais nítido. Se assemelhava a um miado, mas ao mesmo tempo, era como se alguém chamasse por seu nome.

O transe de Lucas foi cortado pela mão de Edu em seu braço. Só então ele viu que estavam cercados pela neblina, apenas as chamas azuis iluminavam a escuridão, e elas estavam por toda parte! Ao seu redor,  percebeu rochas depositadas de pé, assumindo o aspecto de lapides, transformando o campo em um sinistro cemitério.

Foi demais para a coragem deles. Cada um pegou seu celular para ligar para os pais... Sem sinal.

Em pânico, os amigos correram, buscando o muro que os levaria para fora daquele lugar maldito! Foi longo o tempo que durou a busca, porém nada encontraram. Estavam agora num grande campo aberto, o solo coberto pelas lapides rochosas, o ar tomado pelas chamas azuis. Por mais que corressem para longe, o cenário permanecia inalterado.

Exausto, Eduardo apoiou as mãos nos joelhos. Lucas forcejava por compreender tudo aquilo. Mais uma vez, ouviu o misterioso chamado, com maior do que antes. Tinha certeza  de ouvir um felino miando. Tinha certeza de ouvir chamarem seu nome. Caminhando na direção do som, viu o gato preto surgir entre a cerração, encarando-o fixamente. Voltou-se para Eduardo... mas seu amigo não estava mais lá...

Chamou-o com toda força... nada. Procurou ao redor... nada novamente. Eduardo desaparecera.

Lucas caiu por terra esgotado. O gato manifestou-se e mais uma vez o garoto pensou ter ouvido seu nome. Colocou-se de pé e encarou o animal, certo de que o bicho podia ler seus pensamentos. Nisso, outra voz se fez ouvir uma voz feminina. Era Vânia.

― Eu avisei para vocês não entrarem  disse ela solenemente, enquanto se aproximava, o gato gordo em seu colo. A garota aflita se fora por completo, agora ela soava seca e fria, o olhar vazio. Tentara alertar, tentara ser uma boa amiga, mas deram atenção? Agora sofreriam as consequências, cada um a sua maneira.

 Cadê o Edu?  perguntou Lucas exasperado.

 Ele se foi ― e acrescentou, de forma sombria.  Para sempre! O gato escolheu você.

 O gato?!  seria impossível medir o medo na voz do garoto.  O que está acontecendo?

 Essa é a coragem que você queria provar?  retrucou Vânia com enorme frieza. Lucas já não reconhecia mais sua amiga.  Eu já estive aqui uma vez. Qualquer um consegue entrar neste lugar, mas só os gatos sabem como sair. Aquele gato preto pode te levar de volta, desde que você faça o acordo!

 Que acordo?

 O gato vai ser o dono da sua vida daqui pra frente. Vai ter de fazer tudo que ele mandar. Algumas coisas serão simples, outras... acredite, serão desumanas! E eles não toleram desobediência! Se não aceitar o pacto, será abandonado aqui pra morrer.

O garoto ainda não tinha entendido muito bem; sabia que precisa sair, fugir pra longe dali, mas como? Um pensamento cruzou sua mente, a ideia de que poderia obrigar Vânia a mostrar a saída. Como se pudesse ler sua mente, o gato gordo mostrou as presas deixando claro que não iria admitir que levantassem a mão contra sua serva. A essa altura, o garoto não sabia mais o que fazer para escapar daquela situação.

 Assim  disse Vânia  Eu pergunto...

Lucas pensou em Eduardo, nos pais a quem contara uma mentira naquela mesma noite, em Vânia ― não naquela, parada à sua frente, inexpressiva, e sim na amiga com quem crescera junto. Não podia aceitar uma proposta tão absurda, mas também não queria ficar sozinho naquele lugar para sempre. Enquanto Vânia concluía a pergunta, seus punhos se fecharam com ódio e os olhos começaram a perder o brilho...

― ...Você fará o acordo?

4 comentários:

  1. Gostei bastante, Joe! Sou fã de gatos, e na sexta 13 fiz um post sobre gatos pretos! Parabéns, gostei mesmo!

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